quarta-feira, 13 de abril de 2011

Londres e as cores

 


Chegar a Londres foi, de certo modo, apavorante. Troquei o conhecido, pois que dublin assim já o era para mim, pelo novo. E o novo, o leitor talvez concorde, é, em alguma proporção, desconcertante. Bom, mas a verdade é que, enquanto esperava pela regularização de minha situação no continente, fui ficando na Irlanda sem saber bem até quando, até que decidi partir e, para assim acontecer, optei pelo não desconhecido ônibus, com o custo sempre bastante atraente. Quando contei aos amigos que fiz no albergue onde fiquei que viajaria por doze horas, todos eles me olharam com espanto. É que a lógica européia pede transportes rápidos, viagens curtas e nenhuma paciência. Bem esperado, em se tratando de um continente quase sem fronteiras e com passagens aéreas que, caso programadas com alguma antecedência, chegam a 20 euros.  
E assim segui para o Reino Unido, com sapatos ansiosos por andar. Atravessei o mar de balsa e cheguei à eternamente nublada Londres pela manhã. Ainda na estação, uma pergunta a alguém que passava: "senhor, por favor, como chego ao Hyde Park". Ao que o sujeito interrogado vira-se espantado e vejo que há um celular ocupando sua atenção. Aí penso: "gosto de me perder em cidades grandes". E sigo.
A primeira impressão que me tomou a mente foi a do gigantismo. Tudo adquiria ali uma proporção imensa. E sigo, pequeno, pacientemente perdido, a me encontrar. Cores nenhuma. Londres era cinza. Essa, pelo menos, foi a sensação de que se me tomou a idéia no primeiro momento. 
Encontrei o albergue, onde dividia um quarto com vinte pessoas, deixei armas e bagagens, e vou seguindo o ímpeto ansioso dos meus sapatos, que me guiavam. Londres era incrível. Fui andando, me perdendo, me encontrando, descobrindo como usar o metrô.
E escolhi perder-me em um parque. Sim, na ocasião, perder-se era uma escolha.
Era início de primavera. Improvável não reparar em todas as árvores incolores floridas com vida, em todas as rosas amarelo-vivo e vermelho-sangue. Aquele parecia ser o único lugar colorido de toda Londres, pra mim. Troco conversas e adeus com desconhecidos e vou seguindo, com meus sapatos, a jornada a que me propus.
E, a proporção que a cinzenta cidade se me apresentava (ou eu a esta), descobria nela cores vivas. E as primeiras de que me dei conta existirem foram em uma visita a um museu de arte moderna. Lá, li uma obra-de-arte em forma de livro que se chamava "The Black Book of Colours", em que a autora se propunha a apresentar o mundo visto pelos olhos de uma criança cega. "Thomas gosta de todas as cores porque ele as pode ouví-las e cheirá-las e tocá-las e prová-las". E esta foi uma das grandes lições que aprendi.
A partir de então, meu olhar para o outro foi diferente. Qual é a cor que colore as pessoas? E as camisetas com letreiros engraçados, os cabelos com penteados modernos e pintados com cores diferentes, as roupas extravagantes e os pircings e tatuagens que tão recorrentemente via em nas pessoas passaram a também significar um pouco mais para mim. Esse é só o modo de que dispõem para contar as histórias de suas vidas, já que é difícil falar com palavras em que lugar seja.
E fui andando o meu andar sem pressa. E em um dos muitos parques de Londres, conheci um afegão que veio para a Inglaterra fugido do regime do Talibã, antes da invasão americana ao país. Tinha os mesmos olhos que sempre imaginei que teria o menino Hassam, do best seller (embora tenha preconceitos com best sellers, o li) "O caçador de Pipas", e me ensinou muito sobre recomeçar. E, como não podia parar, segui, recomeçando sempre, como ele.
Londres passou a ter tantas cores para mim! Passei a enxergar a tentativa de desviar a monotonia de uma cidade cinza em todas as esquinas. E conheci muitas pessoas que me ensinaram a assim ver. Espanholas que saiam todas as noites e dormiam todo o dia, um italiano de meia idade que descobriu a vida livre de lá, uma inglesa que pintava há 6 anos uma tela inacabável na rua, um estudante de arte que todas as manhãs comprava milho para alimentar solitariamente os pombos dos parques da cidade...
E, malas sempre feitas, chegou a hora de partir. Para a segurança de Lille, no norte da França, na casa de um amigo da família.

segunda-feira, 11 de abril de 2011

Dublin e a Divina Comédia

Ainda bem me lembro de quando pensei pela primeira vez, ainda em Orlando, em seguir de lá para a Irlanda sem escalas. Lembro também do prazer discreto que repentina e absolutamente me embrulhou o estômago com medo contido. É que, eu sabia, aquele era um desejo antigo que poderia logo ali tomar forma de realidade. E, em um feliz pensado impulso - mas somente na proporção em que a lógica e a biologia nos permitem pensá-lo - decidi pela indecisão. Em poucas semanas, programei o modo de entrar naquele país, as coisas bárbaras que iria fazer no ano em que viveria lá, nas aventuras que teria. Mas esqueci de pensar em como viveria. O dia do adeus à segurança da Disney chegou. E voei dos Estados Unidos à Irlanda me pensando o garoto Jimmy, ainda que, àquela altura, eu jamais tenha ouvido sua história.
Dublin foi sedutora nos primeiros dias. Misteriosa, medieval, gótica. Aventureira. E, nas duas ou três semanas seguintes, foi sapato no pé. Corri para comer, corri para encontrar onde dormir, corri para encontrar o que beber, corri para não me perder... Corri. E me cansei.
E, sapatos no pé e idéias na cabeça, decidi pela partida. E foi no dia anterior ao dessa decisão que ouvi pela primeira vez a canção dos bufalos, que se segue no post anterior. Foi por uma cantora de ópera americana que, órfã, abandonou os Estados Unidos tão logo saiu do orfanato e, sem caminho de volta, tomou a partida por lar. Morou em Paris, em Londres e, naquele momento, cantava sua voz doce em um bar escuro para bêbados surdos em Dublin.

Malas nunca na vida desfeitas, parti para a descoberta desse outro que sempre tanto me fascinou. E cantei com músicos de rua, celebrei a vida com um grupo de terapeutas alternativos numa colina no meio do mar tocando violino, bebi até cair com alemães beberrões, comi crepes genuinamente franceses feitos por franceses, participei de um sarau numa taverna escondida, fui vendedor de porta em porta por um dia (de terno e gravata, por favor!!)... Até que parti. Leve. Para Londres.

Jimmy, listen to the buffaloas' song

Jimmy, o garoto aventureiro da canção francesa que recebe seu nome, é chamado para tornar ao seu lar pela voz dos sábios bufalos que habitam na fazenda simples a que a letra nos remete. A música fala especialmente do que ele deixou e de o quanto tudo aquilo depende do seu olhar próprio para continuar existindo dentro de si, já que é ele o senhor de seu mundo. A canção em si mesma não nos permite concluir qual foi a decisão tomada por Jimmy: se a de voltar para o lugar de onde saiu ou se a de continuar sua busca pelo que desconhece, e que, como desconhecido que é, nunca conhecerá. Nesta decisão, ao contrário do que ele talvez possa imaginar, há um fim nela própria. A decidir pelo impalpável, Jimmy decide também pelo movimento. 
Ao contrário de Jimmy, que é absurdamente esférico e imprevisível, eu escolhi o retorno. E começo hoje, aqui, a dividir um pouco do mundo novo que descubro solitariamente um pouco mais todos os dias. Eu e meus sapatos.